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Kalunga – AFRONTOSAS

Kalunga: Por uma ecologia negra e cuír

“Kalunga: Por uma ecologia negra e cuír” é um projeto colaborativo de investigação artística do Coletivo Afrontosas criado pelas artistas ROD, tony omulu e DIDI e está em desenvolvimento desde o final de 2023. O projeto foi criado a partir de reflexões sobre o neologismo “cuír” e a importância das estéticas mitológicas não-europeias na formação das identidades de artistas negras em estado migratório.

Quando voltamos os olhos aos mitos afro-brasileiros que foram constituídos a partir da herança cultural de Angola, Nigéria e Benin vemos o quanto a “natureza” é um elemento fundamental para dar existência ao mundo.

Por isso é importante pesquisar como uma prática artística voltada para a compreensão da nossa relação com a “natureza”, no sentido do seu cuidado e do que ela nos oferece.

Falamos de uma perspectiva que não depende mais, ou que pretende não depender, de uma visão heterossexista e cissexista compulsória e que não quer ser submissa a uma visão europeísta e embranquecida.

O principal objetivo do projeto é compreender como as mitologias afro-brasileiras podem influenciar a produção da arte contemporânea a partir do cruzamento interseccional entre ecologia, raça, sexualidade e gênero. Pretende-se refletir como o conceito de ecologia queer pode ajudar à nossa prática artística coletiva através de um movimento ecocrítico e autónomo que rejeita a heterossexualização compulsória dos seus processos e os seus binarismos.

O projeto tem foco em quatro áreas: ecologia, raça, gênero e sexualidade. Articula-se entre disciplinas ligadas às Ciências Sociais, Biologia, Justiça Ambiental e Teoria Crítica da Raça. As artistas ROD, tony omulu e DIDI são pessoas queer negras e imigrantes que têm desenvolvido um importante trabalho em Portugal no campo da produção artística e no debate sobre a importância da presença de pessoas queer negras no cenário artístico português. A questão do gênero e da organização social da sexualidade estão, de modo evidente, na estética que elas têm vindo a desenvolver.

A busca por compreender o papel de uma artista negra, queer e imigrante a fazer arte em Portugal requer não apenas criatividade, mas a busca por conceitos que contribuíram para que a produção artística responda às necessidades contemporâneas para sua existência. Neste sentido, buscam no imaginário da Kalunga um ponto de partida que irá se conjugar com práticas de resistências no sentido de transgredir semânticas heterossexuais e cissexistas na tentativa de remodelar os pressupostos normativos de “pureza”, alteridade e performance que são catalogadas como “perigosas”, ou seja, aqueles ligados à pessoas LGBT’s e negras.

A metodologia do projeto procura introduzir na produção artística das artistas o potencial da subversão semântica das categorias, por exemplo, a partir da invocação de uma linguagem própria e representativa dos objetivos das mesmas. O conceito de “cuír” é um exemplo disso. Invoca a qualidade própria de artistas que vêm de geografias decoloniais na busca por meios que ainda não foram formulados para uma convivência harmoniosa com o ambiente.

Considerando que o conceito de “natureza” advém de um olhar externo da sociedade sobre como a categorizamos e considerando que ela só pode ser melhor compreendida através da ideia de queer, ou seja, através de um olhar que rejeita a naturalização da heterossexualidade e a sua projeção para a forma de funcionamento da “natureza” (sociobiologia), o projeto busca no conceito de Kalunga um pensamento imaginário que tenta cooperar na reformulação de fronteiras e dicotomias que impedem e limitam a existência de pessoas, historicamente, marginalizadas.

Como pensar uma prática artística capaz de pensar a sexualidade como um eixo de poder que repercute diretamente na condição de pessoas queer? Como se opor a heteronormatividade num exercício artístico que conjuga a potencialidade do que chamamos de “natureza” no sentido de atrai-la como aliada na afirmação de uma identidade própria não dependente dos efeitos coloniais da racialização destas pessoas? Como a Kalunga, o lugar da morte e da vida, pode contribuir com o nosso trabalho artística no sentido de proporcionar elementos estéticos que produzam não apenas a fruição pública, mas também a produção de uma ecocrítica comprometida com as questões climáticas que hoje o mundo enfrenta? Como alinhavar a arte como parceira dos processos decoloniais?

No movimento que o projeto tem feito até aqui, as artistas têm se debruçado sobre questões fundamentais para a sociedade contemporânea. A exploração dos recursos naturais se conjuga com a insistente exploração das vidas negras e queer, tanto pela indústria como pelo próprio sistema da arte. O modelo extrativista é contínuo e reverbera o estado colonial do mundo em que minorias continuam a ocupar o lugar de sempre. A Kalunga e Ecologia Cuír juntam-se na proposta deste projeto como ponto de fuga. Aparecem como exercício que procura interpretar a “natureza” não como um recurso a ser consumido até o fim, mas como uma companheira. Consideramos que a nossa relação com os outros seres vivos foi estabelecido por uma heterossexualização externa à sua existência. Por isso, acreditamos que esta condição pode ser alterada, já que não é ela não é uma relação biológica. Como falar de ecologia queer sem pontuar a condição extrema de consumo a que a “natureza” têm sido submetida? Como deixar de lado os problemas causados pela relação naturalizada e anestésica que estabelecemos com os outros seres vivos a partir do seu consumo desmedido. De onde vêm a ideia de que a “natureza” existe para ser consumida assim?

O projeto pretende utilizar o neologismo “cuír” como ponto de partida para o contrastar categorias pré-estabelecidas dentro do campo semântico da palavra “queer”. Do mesmo modo, invocamos o “cuir” como exercício prático e teórico de questionamento da limitação que as categorias sobre a natureza, a sexualidade e o gênero estabelecem na auto-determinação de identidades não conformadas com tais categorias. 

A palavra “cuír” é utilizada no projeto como forma de estabelecer uma outra posição no mundo sobre a resistência decolonial de pessoas negras lgbtqia+. Cuír é uma manifestação de insurreição contra as tentativas de aprisionamento de pessoas não-hegemônicas dentro de certas categorias. Cuír é português do Brasil. É mitologia afro-brasileira. Abriga uma posição de contraste com o normativo. Fora de um contexto eurocentrado (branco-binário), o cuír traduz uma conceituação negro-fundamentada que se alimenta de uma diáspora dissidente-sexual.

Do mesmo modo, o conceito de Kalunga serve como mediador desta busca. Um elemento que tem se tornado fundamental na compreensão de uma ecologia negra e cuír. Kalunga é o lugar que está entre. Conecta mundos, conecta os limites e, assim, torna-se um lugar que contesta o conhecimento europeu como primeiro. Kalunga é o dentro e o fora, fazendo assim a totalidade. E ela nos serve, neste projeto, não como conceito balizador, mas como bússola que mostra por onde é possível seguir em termos de mudança de concepção sobre nossa relação com o que consideramos ser vivo, não vivo, humano, não humano.

Em breve mais informações.